Era um dia possivelmente considerado perfeito no interior paulista: sol, temperatura agradável, sem trânsito . Fotos pulavam a todo momento nas redes sociais: amigos no barzinho, no parque, no samba. Cinema, show, churrasco. “Vamo pra feirinha?”, “Vem pra cá, tá ótimo”.
Eu virei na cama e voltei a dormir. Acordei, tomei meu café. Descobri que uma amiga estava grávida, mandei parabéns. Deu soninho. Voltei a dormir. Acordei cansada. “Perdi metade do dia?”. Um pouco mais. Ia resolver umas pendências do trabalho: “Posso deixar pra segunda, não é urgente”, pensei, sem qualquer força de sair da coberta. Virei. Tentei voltar pro sonho onde eu estava gargalhando com minhas amigas da escola. Não tinha mais uma gota de sono. O cansaço permanecia, mas minha mente já estava angustiada demais pra voltar a desligar.
Luzinha laranja.
A luzinha amarela tinha acendido no dia anterior: tentei me enganar de diversas formas para não ir fazer minha caminhada. “Não vai fazer falta”, “você compensa no sábado”, “você acordou muito cedo, não vai render”.
Felizmente, passei algum tempo estudando e treinando para interpretar esses sinais. Todas as vezes em que eu me flagrava evitando situações de algum esforço que me trariam bem estar, significa que ela estava à espreita e que eu precisava dar uma paulada nela.
Não é fácil compreender que uma tristeza que se “arrasta” possa advir de uma patologia imobilizante. Parece preguiça. Covardia. Coitadismo. É mais fácil jogar no colo dos outros. Esperar que tenham peninha de você. Que aliviem a sua barra só porque “ohhh, você tá tristinha e tá dizendo que é orgânico”.
Não é todo mundo que entende a depressão. Nem que acredita. Parece drama, parece frescura. Comigo, era quase impensável. “Mas você é tão alto astral!”, “como assim, você? Triste?”. E em seguida, as frases clássicas: “você tem que ter força de vontade”, “você tem que se ajudar”.
A própria compreensão da depressão enquanto doença é demasiadamente equivocada. Poucas pessoas sabem que a tristeza profunda causada por ela tem razões bioquímicas. Um desequilíbrio na produção de neurotransmissores. “É tipo quando o pâncreas falha na produção de insulina, daí a pessoa fica diabética, e tem que tomar alguns cuidados na rotina pra não passar mal nem sofrer outras consequências… só que lá no setorzinho das emoções”, eu tentava explicar.
O problema maior é que, ao contrário do diabetes, o desequilíbrio bioquímico que caracteriza a depressão patológica não ataca a vista, não dá sede, formigamento, nem essas coisas facilmente perceptíveis. Ela atua na vontade. É como se pouco a pouco sua disposição fosse deixando de existir. E sem ela, naturalmente, a inércia vai transformando o quadro clínico numa espiral cada vez mais escura. Sem vontade, não existe ação. E, portanto, cada vez menos perspectiva de mudança. E sucessivamente, descendo nessa espiral da inércia até o ponto em que a ausência de tudo é tanta que o mundo perde a cor. E a graça.
E aí, é a luzinha vermelha.
Como exigir “força de vontade” de uma pessoa que não consegue mais ver que existe saída desse buraco sem luz? Em uma outra comparação que gosto de fazer, é como se a depressão fosse uma cegueira emocional. Não é porque a pessoa não enxerga mais a possibilidade de sentir-se bem que isso signifique que seja impossível voltar a ser feliz. É preciso, porém, perceber que essa cegueira se instalou. E, naturalmente, procurar o colírio adequado.
Essas “luzes de alerta” foram uma forma didática (e nada técnica, que fique claro, uma vez que não sou especialista no assunto) que procurei para traduzir para mim tal processo bioquímico tão complexo que eu já tive – e ainda tenho ocasionalmente – o desprazer de um dia experimentar. Se um dia ela acidentalmente sair do verde, tive que internalizar que precisaria interromper esse processo; não por um desejo de melhora – uma vez, que, a inércia patológica é, sim, envolvente – mas como um desafio racional. E para isso, eu precisei entender como funciona.
Compreender com o que se está lidando.
Especificamente sobre aquele sábado; tão logo percebera a luzinha laranja. Sabia o que tinha que fazer. Antes que ela mudasse novamente de cor, calei o apelo do desânimo; levantei dolorosamente como quem se encaminhava para uma reunião de trabalho às 17h de uma sexta. Eu não queria fazer aquilo. Mas eu tinha que fazer: Era o caminho lógico para re-estabelecer o equilíbrio das dosezinhas bioquímicas do meu coco – e de produzir uns neurotransmissores do bem que pareciam estar meio ausentes. Tomei banho. Saí de casa. Segui para a tal da festinha. Meus passos arrastavam. Eu estava odiando cada segundo daquela movimentação. Não importava, naquele momento, para mim, era o meu remédio amargo. (Enfatizo o para mim e o naquele momento, pois a situação é apenas um relato isolado. Para cada cegueira, um tratamento e um colírio – ardido ou não. E sobre isso, conversaremos com mais calma depois).
Encontrei meus amigos, recebi abraços, ouvi pessoas rindo. Não doía mais tanto. Estava a contragosto. Mas já quase melhor do que se estivesse deitada na cama. Sorri. Passeei. Conversei. Gargalhei pela primeira vez no dia. Luzinha verde.